Quando se fala em ensino de literatura na escola não é incomum ouvirmos a rápida associação entre esse saber e as práticas do Ensino Médio.  Muitas vezes, é como se, na escola, a literatura só fosse protagonista durante a reta final da educação básica. 

Em parte, há um motivo para tal equívoco, pois é nessa etapa da educação que o ensino da história da literatura costuma aparecer em muitas redes de ensino. É nessa etapa também que a literatura passa a ter uma carga horária exclusiva, seja como disciplina autônoma na grade curricular, seja como uma parte fundamental do ensino de língua portuguesa.

Leia também: A história do ensino de literatura no Brasil

Até mesmo os livros didáticos de Ensino Médio costumam separar, em suas unidades, uma seção inteira apenas para literatura ou até mesmo capítulos específicos para esse conteúdo. Mas e no restante da educação básica? E no Ensino Fundamental? 

Quando se trabalha um texto literário com os alunos mais jovens, não se está, de alguma forma, ensinando literatura? Quando o professor faz uma leitura de um conto, de um poema na turma, comenta com os alunos esse texto, discute obras literárias nas salas de leitura, não é um ensino de literatura? 

E, indo mais longe, nos anos iniciais, no trabalho de alfabetização, utilizando parlendas, contos maravilhosos, poemas, fábulas, já não há um ensino de literatura?

O que a BNCC fala sobre literatura no Ensino Médio?

Na busca das respostas para as indagações da seção anterior, vamos à Base Nacional Comum Curricular (BNCC), o mais recente documento curricular do país. No qual temos, logo no começo, na parte dedicada à educação infantil, o seguinte trecho: 

A intencionalidade educativa consiste na organização e proposição, pelo educador, de experiências que permitam às crianças conhecer a si e ao outro e de conhecer e compreender as relações com a natureza, com a cultura e com a produção científica, que se traduzem nas práticas de cuidados pessoais (alimentar-se, vestir-se, higienizar-se), nas brincadeiras, nas experimentações com materiais variados, na aproximação com a literatura e no encontro com as pessoas. (BRASIL, 2018, p. 39, grifo meu)

Mais adiante, ainda na parte dedicada a Educação Infantil, lemos que “as experiências com a literatura infantil, propostas pelo educador, mediador entre os textos e as crianças, contribuem para o desenvolvimento do gosto pela leitura, do estímulo à imaginação e da ampliação do conhecimento de mundo” (BRASIL, 2018, p. 42).

Avançando um pouco mais na Base, há uma tabela que menciona as Competências específicas de língua portuguesa para o ensino fundamental. E, entre as dez competências indicadas para essa etapa, temos, no item 9, o seguinte:

Envolver-se em práticas de leitura literária que possibilitem o desenvolvimento do senso estético para fruição, valorizando a literatura e outras manifestações artístico-culturais como formas de acesso às dimensões lúdicas, de imaginário e encantamento, reconhecendo o potencial transformador e humanizador da experiência com a literatura. (BRASIL, 2018, p.87)

Cabe lembrar que a BNCC, embora seja um documento recente, reverbera muito do que está em discussão há bastante tempo na educação brasileira em torno da importância do trabalho com texto literário em toda a educação básica. 

Leia também: Como a Literatura aparece na BNCC?

Como vimos, portanto, seria muito estreito pensar o ensino de literatura enquanto uma prioridade apenas do Ensino Médio. Uma vez que gêneros literários atravessam, pelo menos, todos os nove anos anteriores de Ensino Fundamental.

Como trabalhar com literatura em sala de aula?

A literatura, além de suporte para o trabalho de letramento, deve ter, também, espaços de protagonismo nas aulas. Em que se busque um equilíbrio entre a abertura para múltiplas possibilidades de sentido que tais obras podem suscitar a importância da mediação do professor no processo de aprendizagem.

Dentre tantas possibilidades, há alguns princípios que não podem ser perdidos de vista na hora de abordar algum texto literário na escola, seja em qual etapa ou ano de escolaridade for.

Entre eles, o primeiro é não subestimar a capacidade do aluno-leitor diante do texto literário. permitindo que ele entre em contato com diferentes gêneros e possa, com a mediação do professor, desenvolver sua subjetividade diante da literatura.

Com isso, evita-se encaminhamentos fechados sobre as possíveis interpretações de uma obra, permitindo que, em um primeiro momento, possa emergir todas as compreensões discentes, em vez de apresentar, de antemão, todos os caminhos de leitura.

Leia também: A Literatura na implementação da BNCC

Outro ponto importante de se pensar é sobre o tempo dedicado à leitura literária. É mais proveitoso dedicar um bom tempo para discutir com os alunos as diversas possibilidades de interpretação de um único texto, do que apresentar um carrossel de textos em uma velocidade que impede qualquer aprofundamento da leitura.

A prática de leitura de literatura deve, aos poucos, se estabelecer como uma rotina do cotidiano escolar, através da qual muitos outros saberes podem ser mobilizados, sem urgências quantitativas e conteudistas.

Ainda que o docente dedique um tempo considerável para o trabalho com a literatura, vale lembrar que não existe texto infalível. Por isso, é fundamental ter paciência com a receptividade discente.

Em um momento, a leitura literária pode cativar os alunos e, em outro, eles podem ter resistência ou rejeitar a obra. Isso não quer dizer que não vale a pena repensar a abordagem e até mesmo a seleção feita pelo professor. 

Pode ser frustrante passar horas planejando o trabalho com um texto e, chegando em sala de aula, perceber que aquela escolha não foi a mais adequada.

Por isso, vale lembrar da indicação do parágrafo anterior: é preciso ter tempo para apresentar a obra, aguçar a curiosidade dos jovens leitores, explorar a materialidade do livro, as ilustrações, os recursos visuais da capa…

Todo esse processo já faz parte de um letramento literário, muito antes, sequer, de começar a leitura do texto.

A importância de incentivar os alunos a escrever

Um último ponto que vale a menção no incentivo do trabalho com textos literários na educação básica é a importância em incentivar a produção dos alunos. Evitando, assim, que o único leitor de seus textos seja apenas o professor.

As produções discentes devem circular entre:

  • alunos da turma,
  • entre alunos de outras turmas,
  • devem ter exposição em locais de boa visibilidade na escola,
  • devem romper os limites da sala de aula. 

Pode ser que não seja possível organizar um evento literário na escola. Mas apenas a exposição das produções em um mural, ou mesmo em um varal feito de barbante em algum ponto estratégico da escola, já é um grande movimento de divulgação das obras. 

Os alunos se sentem orgulhos, gostam de ver que suas produções estão sendo lidas por outras pessoas e, assim, a escrita ganha relevância enquanto manifestação subjetiva, inserida em um contexto social de leitura, em vez de ser apenas uma produção para ganhar nota e depois sucumbir no fundo da mochila.

Uma trajetória construída por todos

Apresentar obras literárias, discutir a interpretação dos alunos, dialogar sobre os efeitos de sentido que o autor constrói em seu texto, organizar rodas de leitura, saraus, propor a produção de textos de diferentes gêneros literários… todas essas práticas podem ser consideradas ensino de literatura.

Por isso, um primeiro passo, que pode orientar uma discussão mais consistente sobre a presença da literatura na escola é reconhecer todo o trabalho que é feito por professores e professoras com gêneros literários ao longo de toda a educação básica.

Para o aluno-leitor, é tão significativa a mediação que a professora faz da leitura de uma fábula nos anos iniciais, quanto a análise que o professor de Ensino Médio faz de um soneto. São momentos distintos, mas que compõem a mesma trajetória, cujo principal objetivo é ampliar horizontes e fortalecer a autonomia intelectual.

Referência

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2018. 

Diego Domingues 

É graduado em Letras (UFRJ), mestre em Educação (UERJ) e doutor em Linguística Aplicada (UFRJ). Atualmente é professor de língua portuguesa no Colégio Pedro II.