Discutir sobre identidade e diferença na perspectiva da educação nas relações étnico-raciais é fundamental e urgente.

Quem sou eu? Este é um questionamento nada simplório, ainda que atualmente seja visto como algo objetivo, sobre o qual nos confrontamos constantemente.

Uma positividade como o nome próprio parece solucionar de início a questão: “eu sou Tayó”, por exemplo. Mas outras identificações poderiam ser também atribuídas a Tayó, como “sou uma criança negra” (Tayó é a protagonista de histórias infantis e juvenis escritas por Kiusam de Oliveira).

Tais modos de nos identificarmos no mundo apontam tanto para grupos, coletivos, como também para as diferenças dos demais. Esses questionamentos são tão tênues que esse outro precisa ser pensado nas contradições do eu, nas pressões a que o eu está submetido a performar, como observamos no filme Identidade.

Logo, a primeira compreensão que se estabelece nesse debate é que diferença e identidade são indissociáveis. 

De modo equivocado, costuma-se pensar identidades como produtoras de diferenças. No entanto, o processo se realiza inversamente, é na diferença que as identidades se constituem (SILVA, 2014).

Nesse contexto, Silva atenta para a centralidade que o multiculturalismo e a diferença vêm tendo na teoria educacional crítica. Limitado a reconhecer a existência da diversidade, o multiculturalismo carece de uma reflexão sobre identidade e diferença, observa o autor.

É buscando retomar a necessidade desse debate que o inserimos na perspectiva da educação nas relações étnico-raciais. Acompanhe!

Como pensar identidade e diferença na educação das relações étnico-raciais?

Como pensar identidade e diferença na educação das relações étnico-raciais?

Vejamos uma resenha do canal Letras Pretas sobre o livro “O mundo no black power de Tayó” de Kiusam de Oliveira, ressaltando as temáticas que poderiam ser exploradas a partir dessa leitura que diz muito sobre os conceitos de identidade e diferença:

Conceituando identidade e diferença

Como a identidade não é uma questão autônoma, não é suficiente uma identificação direta no mundo social, saber-se criança, negra, com cabelo black, ou mesmo mulher, negra, nordestina, por exemplo não resolve muita coisa.

Não é mais possível relacionar identidade a um mundo social porque diferentes identidades são acionadas e construídas de modo contínuo e fragmentado, como próprio da modernidade.

Faz-se útil retomar, então, alguns modos de compreender o sujeito, a partir do que nos apresentou Stuart Hall (2006) ao discutir o conceito na perspectiva pós-moderna:

  • o sujeito do iluminismo, correspondente a uma identidade unificada;
  • o sujeito sociológico, que constrói sua identidade na interação;
  • e o sujeito pós-moderno, cuja identidade não é fixa, podendo se constituir também na contradição, bem como não ser resolvida.

A identidade é um conceito relacional. Ou seja, é na e em relação ao outro, ao diferente, que o eu se percebe. A diferença é assim concebida como aquilo que o outro é (ela é negra, ela é brasileira). Nesse sentido, toda a organização social interfere e tensiona a constituição do eu e do outro.

Para ilustrarmos essas questões, podemos observar o drama “Identidade”, adaptado por Rebecca Hall, com base no livro homônimo de Nella Larsen.

Na narrativa, duas mulheres negras se reencontram já adultas, com uma delas, Clare (Ruth Negga), casada com um homem racista e se passando por branca. Irene (Tessa Thopson), protagonista da trama, tem sua vida, aparentemente perfeita, com marido e filhos bem educados, confrontada com a vida também aparente e até contraditória de Clare, sua amiga de infância, quer pensada como liberdade, quer como opressão.

Essas percepções da diversidade são importantes no contexto educacional. Entretanto, são insuficientes, pois estão longe de resolverem a questão.  

Link do trailer do filme Identidade (atualmente no catálogo do Netflix)

Identidade, diferença e educação nas relações étnico-racial

Como já discutimos aqui no Blog, a Lei 10.639/2003 alterou a LDB (9.394/96), estabelecendo a obrigatoriedade do ensino da cultura e história africana e afro-brasileira na educação básica, devendo ser realizada principalmente em literatura, história e artes.

Com base nisso, o debate sobre identidade e diferença se constitui em espaço potencializador para nos inserirmos no contexto da educação das relações étnico-raciais.

Pouco mais de 55% da população brasileira se autodeclara negra (preta e parda), conforme aponta o IBGE. No entanto, uma pedagogia que tão somente reconheça e respeite a diferença não parece dar conta do desafiador empreendimento que é superar uma concepção de identidade e diferença essencialista e naturalizada.

Quando afirmamos quem somos, acionamos uma teia de negações, ou seja, negamos tantas outras identidades que não somos, de diferenças do eu perante o outro.

Realizamos, desse modo, um ato linguístico, ou seja, um ato com propriedades características da linguagem, do signo linguístico enquanto marca, sinal.

A personagem Tayó não é outra, a não ser a menina negra que se orgulha de seu cabelo black por poder carregar nele o mundo.

Nessa representação de si, ela se inscreve de modo diferente de seus colegas e toma as provocações sofridas por um viés de afeto, acolhimento e valorização de uma estética negra.

Tayó afirma ter o cabelo diferente dos seus colegas, mas também diz que isso não significa que o penteado dela seja feio, nem que seu cabelo seja sujo; pelo contrário, ela o acha lindo e cheiroso. Nesse processo linguístico, realizamos operações de inclusão e exclusão, ao afirmarmos nossas identidades e diferenças.

Fixar identidades, portanto, se constitui em uma dinâmica problemática que é abertamente desestabilizada quando se coloca em cena a hibridização de culturas, quando se compreende tal processo como próprio de representações sistemáticas de poder.

Resumo do filme

Nem todos têm o poder de dizer quem são, alguns são ditos por outros. O negro passa a existir num contexto classificatório criado pelo branco que se coloca enquanto universal.

Retomando o filme “Identidade”, podemos observar como as personagens centrais performam suas identidades a partir do que os “seus” grupos sociais esperam delas.

Trata-se no caso não simplesmente de não se aceitarem, mas de buscarem cada uma a seu modo um pertencimento, uma aceitação.

A subversão dessas representações identitárias se coloca como fundamental para mudanças discursivas que contribuam para mudanças no nível das instituições pelo menos, como no caso da educação. Essa desestabilização do eu pode ser também desestabilizador em um aspecto macro. A esse respeito, Silva (2014, p. 70) defende que: 

“A pedagogia e o currículo deveriam ser capazes de oferecer oportunidades para que as crianças e os/as jovens desenvolvessem capacidades de crítica e questionamento dos sistemas e das formas dominantes de representação da identidade e da diferença.”

A partir dessas discussões, é preciso fugir de uma perspectiva descritivista da identidade e da diferença.

Essa cilada pode ser reproduzida com o conceito de representação, mas pode ser superada quando se pensa em performatividade.

É nesse âmbito que identidade e diferença se constituem em movimento, em um “tornar-se”. Podemos lembrar aqui os estudos do filósofo Austin, para quem, quando enunciamos algo no mundo, não apenas o descrevemos, mas agimos no mundo. 

Quando os colegas da personagem Tayó descrevem o seu cabelo, estão acionando uma série de relações e construções sociais e culturais sobre a estética negra que contribuíram e ainda persistem para uma estigmatização, discriminação e racismo contra a pessoa negra.

Ressignificar

Em contrapartida, a menina ressignifica as representações de si a partir de uma percepção amorosa, performando identidades negras que a distinguem dos demais, mas nem por isso a desvalorizam, ou mesmo deslegitimam o seu lugar no mundo.

Precisamos ter em mente que a repetição é eficaz para a performatividade. Os enunciados produzidos pelos colegas de Tayó reproduzem vozes de outros tempos e lugares em que a pessoa negra foi diminuída, desumanizada e em que esses comportamentos eram tidos como naturais.

Muitas vezes até inofensivos. Da mesma forma, quando Tayó diz repetidas vezes para sua mãe como quer o seu BLACK POWER (mãe, hoje quero meu BLACK POWER…), subverte a ordem imposta, registra a importância que tem o seu penteado na constituição de si, ratifica seu amor pelo próprio cabelo, bem como a beleza e o poder que atribui a ele. Valores que não são apenas dela, mas de seu povo, de suas origens, de uma história que lhe foi sequestrada.

Conclusão sobre a perspectiva da educação nas relações étnico-raciais

Conclusão sobre a perspectiva da educação nas relações étnico-raciais

Enquanto produções sociais, identidade e diferença carecem de um debate que problematize o essencialismo, é preciso compreender a dimensão negociável desses conceitos e isso implica tratar diferentes culturas a partir da comunicação, discutindo o consenso e, sobretudo, os reconhecendo como fruto de relações de poder, de desigualdades e também de injustiças.

Um projeto educacional voltado para a educação das relações étnico-raciais deve superar o desejável e edificante respeito e tolerância para com a diversidade (Silva, 2014).

Argumentando em favor de uma pedagogia crítica que atue para além do reconhecimento da diversidade, para além da tolerância ao outro, para além de compreensão redutiva/reduzida da multiplicidade, que atue nas fissuras, nas contradições, no movimento e tensões próprios à produção social da identidade e da diferença.

Movimentos e pressões que são comuns, próprias ao não acabamento do ser. Buscamos aqui ilustrar os conceitos a partir de linguagens literária e cinematográfica (“O mundo no black power de Tayó” e “Identidade”) com diferentes modos de representação e que podem servir como estratégias para problematizar esses e outros temas correlatos, com pontos de vista político, econômico e histórico. 

Jaciara Gomes

É Doutora em Linguística pelo PPGL/UFPE. Atua como professora adjunta na Universidade de Pernambuco, no curso de Graduação em Letras. Realiza pesquisas sobre práticas de letramentos, bem como sobre o ensino de leitura e de escrita. É líder do Grupo de Pesquisa em Letramentos e Práticas Discursivas e Culturais (LEPDIC) e coordena o projeto de extensão em Culturas Periféricas (CULPERIFA).

Gostou de saber mais sobre identidade e diferença na perspectiva da educação nas relações étnico-raciais? Então, saiba como entender políticas educacionais afirmativas refletindo sobre discursos antirracistas!

Para saber mais

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução Tomaz Tadeu da Silva, Guaracira Lopes Louro-11. Ed.. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. SILVA, T. T. da.   A produção social da identidade e da diferença. In: Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais /. Tomaz Tadeu da Silva (org.). Stuart Hall, Kathryn Woodward. 15. Ed.. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.